II - Momentos

Debatia-se com com a chuva diluviana e as rajadas de vento mas a intempérie desenhava-se como um mal menor dado os acontecimentos recentes na sua vida.
A cara lavada em lágrimas, ou seria da água da chuva que o vento insistia em arremessar contra si. Os pensamentos perdidos nos instantes anteriores quando o chefe lhe comunicou que, devido a cortes orçamentais, acabara de perder o emprego.
Na verdade sabia que era uma desculpa esfarrapada, como tantas outras que utilizaram para a submeter a anos de esforços não recompesados em prol das contas bancárias das chefias.

O triste acontecimento seria por certo bem menos triste, e até bem alegre, se não se apresentasse como a cereja no topo do bolo, ou do pudim, ou de outra coisa qualquer daquelas semanas catastróficas.
É bem verdade que há muito desejava que a "convidassem" a abandonar o trabalho que exercia há mais de três anos mas nos últimos dias tinha sido o salva-vidas a que se agarrara para aliviar o peso dos pensamentos.
Naquela semana fatídica terminou a relação que prometia resultar em casamento. Terminou porque tinha de terminar. Talvez porque não tinha mais por onde crescer, talvez porque tenha descoberto que o namorado, que tinha como certo e até ao fim da vida, se tinha envolvido com a sua melhor amiga, ou talvez porque simplesmente assim estava escrito no guião da sua vida.
Na semana anterior o irmão mais novo, com problemas de toxicodependência e em recuperação há largos meses, recaíu, roubou todos os valores de casa e voltou às ruas. No mesmo dia, ao fim da tarde, procurou-o pelas ruas e descampados decadentes onde dezenas de silhuetas cambaleantes se arrastavam atravessando-se na sua frente como se fosse invisível. A procura não teve qualquer sucesso e na manhã seguinte a família acordou sobressaltada com a visita de um polícia que trazia a má notícia, uma dose mal calculada, no desespero da ressaca, explodira no interior das veias do "puto". Fora recolhido, já sem vida, do interior de uma manilha de esgoto.
É certo que se acabara de vez o desassossego mas também se acabara de vez a esperança em relação ao futuro do "puto". A família desmoronava-se, a mãe afundava-se numa forte depressão, o pai deixara o lar anos antes não suportando o peso de ter um filho "agarrado" e Maria sentia-se o fiel da balança, tentando a muito custo garantir a sanidade mental, sua e de sua mãe, como única forma de sobrevivência.

A chuva não abrandava quando rodeou a esquina de acesso à rua de sua casa. A rua iluminava-se a espaços pelos pirilampos rotativos de uma ambulância que se encontrava parada junto da porta do seu prédio. Sentiu um soco no estômago e a respiração acelerou repentinamente, procurou soltar algumas palavras para si própria mas o som não saiu, largou a correr, com as calças ensopadas a limitarem-lhe os movimentos. A curta distância parecia-lhe imensa, e sentia-se mais distante a cada passo e enquanto começava a reconhecer os rostos preocupados dos vários vizinhos que se abrigavam na entrada do prédio.
Alcançou a ambulância no momento exacto em que fechavam a porta traseira. Procurou perceber o que se passava quando a vizinha da frente a abordou, abraçando-a e pedindo-lhe calma.
No instante seguinte as suas pernas não resistiram ao seu peso, ajoelhada no passeio encharcado amaldiçoava o seu destino.

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