I - Um novo início ou o príncipio do fim

Vivendo paredes meias com a desilusão, deitado, ou deitada na cama com a tristeza, mata a sede com as pequenas gotas de felicidade que, de quando em vez, escorrem pela face e se misturam com as lágrimas, deixando o doce salgado na ponta da língua que se solta de revolta. Mas a revolta não basta para vencer o eco mudo do poço imenso em que se afunda e os seus gritos vão pouco mais além. Batem forte nas paredes húmidas frias de pedra para o, ou a atingirem de novo com uma violência ímpar.
Ele, ou ela percorre os dias, de pés atolados na lamacenta realidade e sempre de cabeça erguida olha para lá longe, onde se abre o horizonte. É nessa visão, qual oásis impossível de alcançar, que ganha forças para continuar.
Ele ou ela, sei lá, eles... talvez nós... Impossível perceber quem ou porquê, na certeza porém de que iniciamos uma história. As histórias não começam no início, começam no ponto em que as queremos começar. Não têm de começar com certezas, muito menos com nomes ou verdades absolutas, começam como apetece que comecem.
As melhores histórias começam com interrogações, com um confuso ar de espanto, com uma incerteza de quem não sabe se quer ouvir até ao fim, ou de quem não sabe se quer contar até ao fim.
Talvez esteja a começar a contar qualquer coisa, mas ao certo não se sabe o quê. Nem sequer eu sei o quê.

Ele, ou ela, vagueiam pela cidade de pés enfiados nuns AllStar rotos, de sola gasta que parece arder sobre o alcatrão amolecido pelos quarenta e tal graus que se fazem sentir.
Está numa cidade que não conhece, bom... conhece no sentido lato. Aterrou neste sítio há coisa de quatro horas e já percorreu uns quantos quilómetros a pé, vagueando, procurando uma pista que lhe indique o caminho que deve seguir, de preferência uma boa pista.
Chegou sem planos, com a incerteza de quem não sabe para onde vai e a certeza de quem não quis ficar onde estava. Onde chegou e de onde veio é de somenos importância. Se chegou de avião, barco ou comboio, ou outro meio qualquer também não acrescenta muito à história. Até pelo motivo que atrás frisei, o início da história é quando se quer, e eu quero que o início da história seja no momento em que os pés suados revistidos do que resta de uns AllStar sufocantes se arrastam pelo asfalto de uma cidade que, para o caso, também não interessa qual. Importante é que está calor. Quarenta e tal graus... à sombra... às quatro da tarde.

Ele, ou ela, pouco importa, procura um sítio, o seu sítio. Para descansar, tomar um banho e recomeçar uma vida que aos trinta e poucos anos de idade ainda não lhe fora outra coisa senão madrasta.
Deixou os amigos e a família. Mas afinal não havia muito que deixar. Os amigos sempre se revelaram de ocasião. A família ruíu com o peso do destino. Aos trinta e poucos anos de idade, ou seriam vinte e poucos?! Bom... os suficientes para parecerem meia vida sentia-se de novo livre e pronto, ou pronta, para um novo começar.
A sede crescia e o estômago colava-se às costelas. No bolso uma nota e alguns trocos de uma moeda que de pouco ou nada serviam naquele local.
Os olhares estranhavam aquela figura que se movia cansada e observadora. Não se sentia abraçado, ou abraçada por qualquer olhar, não se sentia bem recebido, ou bem recebida... sei lá.
Parece importante definir pelo menos o sexo da figura para não me tornar repetitivo. Seria mais dramático que fosse uma figura feminina, mas seria mais óbvio que fosse uma figura masculina. Porquê? Não sei... parece-me. E afinal sou eu que estou a contar a história. Cheguemos a uma conclusão. É uma ela, ser feminino de cara bonita, pele veludo e olhar triste. Uma ela de seu nome Maria... ou não... O nome pouco importa no caso. Mas aceitemos Maria. Maria procurava onde dormir. Vagueava por uma cidade desconhecida e aventurava-se por ruas pouco iluminadas quando o sol começava a adormecer.

A brisa cálida vinda de sul trazia-lhe algum conforto depois de horas a caminhar ao calor. Sentou-se num passeio, junto de um prédio que lhe parecia uma pensão, ou algo do género.
Em breve percebeu que era olhada de lado pelas vizinhas de roupas minimalistas de cor garrida e saltos demasiadamente altos. Os breves minutos de descanso acabaram num sobressalto. Uma mão masculina agarrou-lhe o braço e num gesto brusco forçou-a a levantar-se.
Antes que pudesse reagir ou gritar por auxílio foi empurrada para um mercedes preto de vidros fumados que arrancou de imediato.

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