Perceber

Caminhava em passo apressado com a obsessão de quem tem um destino ao qual não pretende chegar atrasado. Semblante cerrado com as lágrimas a bailar nos olhos sem que se percebesse se o motivo era o vento gélido que o afrontava ou os acontecimentos recentes.
Caminhava sem destino. Mas só ele o sabia. A cada passo sentia que ainda não tinha chegado e lançava de imediato outro. Galgava charcos de água, passeios, estradas. Enfrentava os carros de frente, luzes que cegavam, buzinas disparadas que se desviavam no último momento.

Atravessou finalmente a estrada que o separava da praia. O início de noite frio, ventoso e com a ameaça constante de chuva não convidava a um passeio pelo areal. Mas ele também não passeava. Procurava um destino. Fugia do dia, da semana, do passado. Fugia dele próprio ou daquilo em que se tornara sem perceber como nem porquê. A areia afundava sob os seus sapatos já encharcados. O caminho traçado em linha recta para o mar rasgava o areal liso e virgem naquela noite de inverno.
Seguiu, passos decididos mas a ritmo decrescente.

As primeiras lágrimas de chuva cairam sobre si, leves, quase vapor, bailavam ao sabor do vento. As gotas em volume crescente, arremessadas contra si pelo vento forte vindo do mar começaram então a impedir-lhe a visão. O mar enrolava-se em vagas de dimensão invulgar explodindo num bramar assustador e espalhando um turbilhão de espuma, água e restos de madeiras velhas pelo areal.

Os pés gelaram ao primeiro contacto com a água. Hesitou por breves segundos para voltar a arrancar, decidido. Alguns passos e já a parede de água o envolvia até à cintura. Segundos depois uma vaga de alguns metros de altura abateu-se sobre ele. A violência da onda ia muito além do que qualquer humano poderia suportar. Não resistiu. Quase de imediato sentiu a pele rasgar pelo impacto de materiais mais sólidos arremessados pelo mar. Anestesiado pelo frio, rasgado pelo desespero que o levou até ali, ignorou a dor física. Deixou-se enrolar. Deixou-se transportar. Deixou-se levar.

Quase com a mesma força com que o puxou, por estranha vontade da natureza. o mar que nessa noite de tempestade teimava em expulsar de si tudo o que não lhe pertencia, elevou-o no alto de nova onda e lançou-o com violência sobre o areal. Tão repentinamente quanto as primeiras vagas surgiram, as últimas abateram-se sobre a praia. E o seu corpo ferido adormecia sobre a areia.

Alguns minutos depois, horas talvez, acordava dorido, física e psicologicamente, na cama do hospital. Sedado pouco recordou e fechou os olhos até à tarde do dia seguinte. O seu despertar fez o pai chorar como nunca o tinha visto chorar, a sua mãe debruçou-se sobre ele num pranto misto de alegria e dor, mais alguns outros amigos próximos estavam presentes, como sempre estiveram. Percebeu o quão perto esteve de não os voltar a ver. Percebeu que quem faltava ali, lhe tinha faltado sempre, percebeu que na realidade, não faltava ninguém. Percebeu que tinha vencido a tempestade e que não precisava de outro motivo que não aqueles que ali estavam para seguir.

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